Nos EUA, desde o massacre na escola primária Sandy
Hook, em Newtown, Connecticut, o debate não para: quem mata, as armas ou os
homens? Obviamente, quem mata são homens com armas --e é mais fácil controlar
as armas do que controlar os homens, os quais são bastante imprevisíveis.
Para a NRA (Associação Nacional dos Rifles), ao
contrário, as armas não seriam problema à condição de que elas não caíssem nas
mãos de malucos. Como evitar que isso aconteça? O presidente da associação
propõe a criação de uma lista nacional das pessoas que, em algum momento da
vida, precisaram de atendimento em saúde mental. Os que estivessem nessa lista
seriam barrados na hora de adquirir uma arma.
Não se sabe se a lista incluiria só os que
recorreram a psiquiatras e a medicações ou também os que recorreram a um
psicoterapeuta (sem contar os que pediram ajuda a padres, pastores, rabinos e
outros "sábios").
Mesmo supondo que se trate só dos pacientes
medicados, imagine as consequências. Dez anos atrás, você ficou triste porque
perdeu o emprego, e um médico (talvez desavisado) quis ajudar e lhe prescreveu
antidepressivos (que, aliás, provavelmente não serviram para nada). Pois bem,
desde então, você está na tal lista nacional (a qual, não se iluda, não será
consultada só quando você pedir para adquirir uma arma).
Anos atrás, psicoterapeuta nos EUA, eu atendia
pacientes que tinham direito ao reembolso da terapia pelo seu seguro de saúde,
mas que preferiam pagar meus honorários de seu bolso: eles não queriam que
ficasse registrado em lugar algum que eles tinham precisado de assistência em
saúde mental --achavam que essa "fraqueza" mancharia seu currículo.
Essa preocupação me parecia descabida, mas talvez eles tivessem razão.
Recorrer à psicoterapia e à medicação psiquiátrica
se tornou banal. Isso não é só consequência de diagnósticos e prescrições
apressados, mas também de uma mudança na ambição da psiquiatria e da psicologia
clínica, que querem, como a medicina, cuidar da gente, ou seja, exercer seu
poder sobre nossas vidas.
Em vários casos, a nova versão do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5), da Associação
Americana de Psiquiatria, prevista para este ano, baixa o limiar do que
pertence à patologia, designando como transtornos --passíveis de cuidado médico
e psicológico-- afetos, pensamentos e humores que, até hoje, eram considerados
parte da experiência humana normal.
Em outras palavras, somos cada vez mais
considerados como "doentes" (e convidados a procurar tratamento) por
uma psicologia e uma psiquiatria que não param de definir nossa
"normalidade" --com as melhores intenções.
Isso é bom ou ruim? Nem sempre é fácil responder.
Eis um exemplo, complicado.
Acabo de ler uma pesquisa sobre suicídio na
adolescência, de Matt Nock (professor de psicologia em Harvard) e outros,
publicada em 9 de janeiro no "JAMA Psychiatry", o Jornal da
Associação Médica Americana on-line (íntegra: http://migre.me/cNp2O ).
Numa amostra de mais de 6.000 adolescentes de 13 a
18 anos, os pesquisadores acharam que 12% pensaram em suicídio de maneira
consistente e continuada --as meninas mais do que os meninos: entre elas, 6%
fizeram planos de suicídio e 5% tentaram se matar. Esses números não destoam de
minha experiência, tanto de clínico como de ex-adolescente, mas, claro,
preocupam.
No entanto, a repercussão do estudo é devida a
outro dado: como o "New York Times" destacou, segundo a pesquisa,
mais da metade dos adolescentes suicidários tinham recebido algum tipo de
tratamento antes de planejar ou mesmo tentar o suicídio.
Receávamos que nossos adolescentes não tivessem
acesso ao tratamento do qual precisam, mas o problema, aparentemente, é que os
tratamentos não estariam funcionando direito. Claro, é preciso aperfeiçoá-los,
estender seu alcance etc. Mas será que nossos tratamentos não funcionam ou será
que estamos esperando deles o impossível?
Mal precisa dizer que devemos evitar que os
adolescentes se suicidem. Por outro lado, é raríssimo que alguém atravesse a
adolescência sem pensar, de vez em quando, que o futuro poderia não valer a
pena.
Seria fácil, mais uma vez, designar esse pensamento
normal como transtorno e, para curar alguns adolescentes, pretender curar a
adolescência, tentando tirar dela aquela dor de viver que, bem ou mal, a
define.
Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia
clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi
professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley.
Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo
(patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de
"Ilustrada".
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